14 Fevereiro 2013
Nos primeiros meses como secretário de Estado, o cardeal Tarcisio Bertone (Romano Canavese, 1934) se assomava de vez em quando ao apartamento a ele reservado ao lado dos seus escritórios, no primeiro andar, sob os afrescos de Rafael. Todas as vezes, fumaça preta: o apartamento ainda estava ocupado. O antecessor, cardeal Angelo Sodano (Isola D'Asti, 1927), ainda não havia ido embora. Assim, Bertone se resignava a subir ao seu alojamento provisório, na torre de São João.
A reportagem é de Aldo Cazzullo, publicada no jornal Corriere della Sera, 13-02-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje, dois homens que não se amam se encontram regendo a Igreja em uma transição muito delicada, sem precedentes no mundo moderno, com um papa a ser eleito e outro ainda em vida, e com o conclave mais numeroso da história – 117 cardeais –, mas sem uma figura hegemônica. Não são homens do futuro. Sodano regeu o governo vaticano na segunda parte da era de João Paulo II; Bertone exerceu a mesma função no atribulado pontificado de Bento XVI. Agora são chamados à última missão: um como decano do Sacro Colégio; outro, como camerlengo.
Sodano terá o papel que, após a morte de Wotjyla, coube a Ratzinger: servir de catalisador das ansiedades e das esperanças dos cardeais, ser o seu confidente e o seu guia, e celebrar a missa "Pro Eligendo Romano Pontifice", em que Ratzinger proferiu a histórica homilia contra o relativismo, antes de conduzir os purpurados ao conclave.
Mas Sodano não irá ao conclave, tendo superado os 80 anos. Ao contrário, Bertone irá. Que, como camerlengo, convocará os cardeais a Roma, presidirá as três ou mais reuniões preparatórias do Conselho, identificará os relatores que apresentarão a situação da Igreja, incluindo aquele que terá a tarefa particularmente delicada de falar aos colegas sobre a situação financeira.
Tanto Sodano quanto Bertone são do Piemonte. E os piemonteses não se tornam papas. Nenhum, em 2.000 anos (haveria Pio V, o papa de Lepanto, nascido em Bosco Marengo, que hoje é província de Alessandria, mas à época fazia parte do Ducado de Milão). Sodano, no entanto, teve um papel no conclave de 2005, enfileirando os cardeais da Cúria ao lado de Ratzinger, que o manteve por mais de um ano no mesmo posto, antes da (lenta) passagem de consignas.
E Bertone terá o que dizer no próximo conclave vindouro. Não é verdade que a renúncia repentina o deslocou. O papa, assim, se isentou das pressões que vinham de fora e de dentro do Vaticano para que substituísse o secretário de Estado. E evitou que fosse cortado do conclave, como aconteceria em menos de dois anos. Bertone tem poucas possibilidades de se tornar papa. Ele tem muitas possibilidades de impedir que um homem de quem ele não gosta se torne papa.
Sodano não gostou quando Bertone substituiu rapidamente os seus homens, para além da lógica normal da alternância. O novo secretário de Estado tomou posse no dia 15 de setembro, e no fim de outubro removeu Castrillón Hoyos da lidernça da Congregação para o Clero. Sete meses depois, o substituto de Sodano, Leonardo Sandri, tornou-se prefeito da Congregação para as Igrejas Orientais, com uma promoção interpretada como uma remoção.
As relações entre Bertone e Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos, também não são fáceis: o poderoso prelado da Bréscia foi substituído pelo canadense Ouellet, hoje na linha da frente entre os papáveis. O início do governo de Bertone foi manchado por um evento que, nas crônicas dessa segunda-feira, não foi lembrado, mas no passado foi usado contra ele no Vaticano: o novo arcebispo de Varsóvia, Stanislaw Wielgus, foi forçado a renunciar no mesmo dia da sua posse, depois de ter confessado que havia sido um informante do regime comunista polonês, nos mesmos anos em que o cardeal Wojtyla era vigiado pela polícia política.
Desastrosa também foi a gestão da paz com os lefebvrianos, incluindo o antissemita Williamson. Mas a acusação mais grave que os homens de Sodano movem contra a temporada de Bertone diz respeito ao IOR: o papa fez a escolha da transparência justamente enquanto o Banco do Vaticano estava envolvido nas duas investigações mais incandescentes abertas pela magistratura italiana, sobre Finmeccanica [segundo maior grupo industrial da Itália] e sobre a aquisição do Antonveneta [9º maior banco da Itália] (não por acaso, nessa segunda-feira à noite, na recepção na embaixada junto à Santa Sé, Bertone assegurava que não existem no IOR contas referentes ao caso Antonveneta-MPS).
Dom Viganò é um homem crescido com Sodano. Ele escreveu ao papa quando descobriu que Bertone pretendia removê-lo do governatorato do Vaticano para mandá-lo para os Estados Unidos. Enquanto isso, o prelado do IOR, Piero Pioppo, durante muito tempo secretário de Sodano, foi transferido para o Camarões. Quanto a Pietro Parolin, que Sodano havia nomeado como subsecretário para as Relações com os Estados, foi enviado para a Venezuela.
Seria um erro, porém, pensar em uma relação deteriorada e áspera no plano pessoal. No Vaticano, não seria possível, muito menos em uma fase histórica como a que estamos vivendo. Os dois cardeais se respeitam e, às vezes, também estiveram do mesmo lado: como quando o papa convocou o seu pupilo Schönborn, réu por ter criticado a expressão – "fofocas" – com a qual o decano havia rotulado a ressonância midiática sobre o escândalo da pedofilia; o arcebispo de Viena encontrou no escritório papal tanto Bertone quanto Sodano e foi forçado a fazer um pedido de desculpas público.
A verdadeira diferença entre os dois, além do caráter, está na biografia e no estilo.
Sodano vem da escola da diplomacia vaticana. Estudou na Gregoriana e na Lateranense, trabalhou nas nunciaturas do Equador e do Uruguai, em 1968 Casaroli o chamou para a Secretaria de Estado e lhe confiou dossiês delicadíssimos com os países do Leste, como a libertação do cardeal Mindszenty das prisões húngaras. Dez anos depois, quando foi núncio no Chile de Pinochet, não evitou as inevitáveis polêmicas, mas saiu ileso.
Bertone não é um diplomata. É um salesiano. Formou-se em Turim, entre o lendário oratório Valdocco, o de Dom Bosco, e o liceu Valsalice, onde jogava futebol como zagueiro, amadurecendo a fé juventina. Acredita nas obras e na atividade, às vezes degenerada – segundo os críticos – em ativismo. É mais impetuoso do que delicado, mais sem escrúpulos do que prudente.
Sodano saía com um único carro de escolta; Bertone se move com a gendarmeria vaticana atrás. Sodano sempre se manteve distante do trabalho de Ruini na presidência da CEI [Conferência Episcopal Italiana]; Bertone escreveu para Bagnasco reivindicando para si as relações com o Estado italiano (mesmo que o novo chefe dos bispos logo tenha conquistado a própria autonomia).
Segundo a velha escola diplomática, a coroa sempre era protegida, ad effusionem sanguinis, como Sodano gosta de repetir: até o derramamento do próprio sangue. Bertone é acusado de ter forçado o papa a se expor para remediar os seus erros. É verdade, porém, que nunca lhe faltou o apoio do papa. De 1995 a 2003, Bertone foi secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, da qual Ratzinger era prefeito.
Nos últimos tempos, quando Bento XVI aparecia em público na sua fragilidade, ele sempre procurava com os olhos o secretário de Estado na primeira fila, e quando cruzava o olhar com ele se sentia mais seguro. No fim, ao invés de removê-lo, preferiu ele mesmo ir embora.
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O decano e o camerlengo: as duas Igrejas de Sodano e Bertone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU